Reconhecer as sutilezas de um bom vinho, saborear com mais prazer um tinto nobre e descobrir o poder de sedução de um Champagne.
Mãos rudes deitaram cuidadosamente o fruto da videira sobre uma pedra. Depois de algum tempo sob o Sol, espremeram o bago fermentado, extraindo um perfumado caldo. Seguindo o instinto de buscar um líquido que suavizasse as asperezas de sua vida, o homem primitivo que habitava a Ásia Menor (a Turquia de hoje) descobriu o vinho. Há 6.000 anos. Imperfeito ainda, mas irresistível. Tão sedutor que passou a ser divino. Osíris, deus egípcio, propagava o culto a essa beberagem. Assim como Noé entre os hebreus, Dionísio na Grécia e o deus Baco para os romanos. Até que passou a simbolizar o próprio sangue de Cristo entre os católicos.
Nas mãos dos romanos, o vinho tornou-se perfeito. O famoso Opimiano, do ano 12 antes de Cristo, chegou a ser consumido 125 anos depois de sua fabricação. Nas escavações para a construção do Metrô de Roma, foram encontradas garrafas de vinho com pelo menos 1.600 anos, em surpreendente estado de conservação.
O aprimoramento da cultura do vinho, a seleção de castas e as técnicas de fabricação conheceram outro importante impulso com a difusão da religião cristã. Quase todos os mosteiros faziam seu próprio vinho de missa. Muitos dos mais refinados crus (vinhedos) do mundo tiveram origem em mosteiros católicos.
Hoje, a produção mundial é capaz de fornecer dez garrafas por ano a cada um dos habitantes do planeta. Em torno de 15 milhões de hectares de terra são usados para o cultivo da vinha. Durante muito tempo, a França dominou dois terços do comércio internacional. Hoje, a Itália é a maior produtora de vinho, seguida de perto pela França. E a cultura da vinha avança em todas as zonas de clima temperado.
Os cinco maiores consumidores de vinho são: França, Itália, Portugal, Argentina e Espanha. Em algumas pesquisas o Brasil aparece abaixo do 30° lugar, com 2,5 litros anuais por habitante. Apesar de tímido, este número está crescendo rapidamente, com a melhoria do produto nacional.
A VIDEIRA E O FRUTO QUE VALE OURO – A planta que dá origem ao vinho tem classificações básicas: a videira de origem europeia (vitis vinífera), mais nobre e de alta qualidade; e a de origem americana (Vitis Lambrusca, riparia e muitas outras), não tão valorizada. Há mais de 5.000 variedades de vitis vinífera, mas apenas cerca de 50 são usadas na fabricação de vinhos finos. As grandes regiões vinícolas plantam apenas castas europeias – Europa, África do Norte e do Sul, Califórnia (Estados Unidos), Argentina, Chile e Austrália -, sendo na maioria destes lugares proibido plantar videiras americanas. No Brasil, a maior parte dos vinhedos é de origem americana, pelas condições da terra, mas nos últimos anos vêm-se desenvolvendo rapidamente as plantações de uvas européias.
As características do solo também determinam a qualidade do vinho. O ideal é o de constituição alcalina, típico da Europa, muito melhor que o solo mais ácido, como é o caso do leste americano, da América Central e do Brasil.
O clima é o terceiro componente vital: deve ser temperado, com inverno normal, primavera seca, verão quente e levemente nebuloso, com períodos alternados de chuva e calor. Essa combinação ideal acontece mais na Europa que em qualquer outro local. Mas climas quentes e secos, com solo desértico, também dão boa uva, como é o caso da Califórnia, da região de Mendoza e San Juan (Argentina), de algumas plantações do Chile e de uma experiência pioneira no sertão de Pernambuco, nas margens do Rio São Francisco, onde estão sendo desenvolvidos castas nobres de vinhas européias com alto teor de açúcar.
A ARTE DE FAZER VINHO – A boa safra é o resultado da combinação de videira, solo e clima. Estes elementos dão as características principais do vinho: cor, sabor e aroma.
VINHO BRANCO: Pode ser feito de umas brancas (o Blanc de Blanc), ou de uvas tintas (o Blanc de Noir), quando se tira a casca logo no início do processo porque ela possui substâncias corantes. Colhidos os cachos, vão para o esmagador que desprende as uvas dos ramos, fragmentando as cascas. A massa formada aí vai para uma prensa, onde o suco é extraído suavemente, sem quebrar as sementes, para se evitar o sabor desagradável. É da prensa que sai o líquido nobre – o mosto -, que dará origem ao vinho. Nas pipas, o mosto fermentado de uma a seis semanas, dependendo do tipo de vinho e da temperatura. Durante a fermentação, o açúcar transforma-se em álcool. Em seguida, os vinhos são transferidos para enormes barris, onde envelhecerão. É durante a fermentação que as primeiras “correcções” no vinho começam a ser feitas, usando-se produtos químicos, para se chegar á cor, ao teor alcoólico e ao tipo desejado (clássico, espumante ou licoroso). Depois, ele é clarificado e filtrado. E, após seis meses, engarrafado.
VINHO TINTO: Segue mais ou menos o mesmo esquema, só que as cascas são mantidas na fermentação, devido aos pigmentos corantes. Não há a prensagem inicial, que separa o mosto, e o tempo de envelhecimento é maior. A fermentação se dá a temperaturas bem mais elevadas que para os brancos. Depois de 24 horas, as polpas e as cascas flutuam. Isto facilita a extracção dos pigmentos corantes e das substâncias aromáticas e do tanino das cascas, uniformizando o mosto. A fermentação se completa num período de uma a duas semanas, quando o vinho é retirado por uma parte da cuba enquanto o bagaço sai por outra. O líquido puro, também chamado “flor”, é levado aos barris para envelhecer.
VINHO ROSÉ: É basicamente o branco, elaborado a partir de uvas tintas, com separação mais rápida das cascas, para evitar a dissolução dos pigmentos. Neste caso, não há prensagem, passando directo da cuba de fermentação para os barris de envelhecimento.
Estas são as definições básicas de cor. Quanto ao aroma, ou à impressão que ele causa ao olfacto, vem da combinação de essências presentes em sua composição, chamado de bouquet para os tintos e de parfum para os brancos. O vinho é uma substância viva: tem um período de incubação, evolução, crescimento, maturação e declínio, até morrer. No vinho morto, a cor se altera – o branco fica cor de chá e o tinto pode ficar cor de café ou mais claro, com resíduos depositados no fundo da garrafa. O sabor fica adulterado e avinagra, caso entre ar.
A classificação dos vinhos – Depois de cor e aroma, a terceira e igualmente definição básica do vinho é o sabor. Daí saem as grandes “famílias”. Na França, costuma-se classificar o vinho por região ou até pelo vinhedo onde é produzido. Na Alemanha, costuma-se separá-los de acordo com o tipo de uva, embora também se classifique por região e produtor. No resto do mundo é o caos: a classificação pode ser por uva, região produtora, tanto faz.
Duas classificações são básicas: uma se refere à consistência do produto e tem a ver com a maior ou menor intensidade de seu poder tonificante (vinhos fortes ou suaves). A outra se refere à textura e divide os vinhos em secos, semi-secos e doces.
Branco seco suave: Tem sabor “ligeiro”, muito leve, e consistência mais fluida que os demais. Entre eles, destacam-se os Muscadet, Chenin Blanc, Pouilly-Fumé, Pouilly-Fuissé, Chabli, Pinot Blanc e Frascati; os alemães da Mosela (garrafas verdes e gosto mais ácido); e a maior parte dos da região do Reno (garrafas marrons, sabor e aroma mais doces). Os conhecedores catalogam alguns desses vinhos como semi-secos porque se sente algo de doce no sabor. É o melhor tipo para acompanhar mariscos, peixes e saladas.
Branco seco forte: Nesta categoria estão os Bourgogne branco, Côtes du Rhône, alguns vinhos do Reno, Meursault, Chardonnay, Riesling e a maioria dos vinhos brancos espanhóis e portugueses. Bom para tomar com peixes, aves e outras carnes claras, com molhos brancos e também lagosta, caranguejo, siri, carne de porco. Os vinhos brancos secos e fortes, com muito corpo, podem ser servidos como aperitivo constante em qualquer tipo de reunião.
Rosado: Fácil de combinar porque vai bem com qualquer tipo de comida e a toda hora, desde que não seja muito doce. Neste caso, combina com sobremesa.
Tinto suave: Nesta categoria estão os Bordeaux (também conhecidos com claretes), Médoc, Merlot, Bauujolais, Cabernet Sauvignon, Zinfandel e Gamay. Vão bem com grelhados.
Tinto Forte: São os Bourgogne, Rioja, Côtes du Rhône, Bourdeaux Saint Émilion, Pinot Noir, Barbera e os Chianti clássicos (estes são os vinhos italianos mais seguros de comprar, assim como os Reserva e os Gran Reserva, já que o Chianti tradicional, que vem com a garrafa forrada de palha, deve ser consumido mais rápido e não resiste às viagens). Também nesta categoria está a maior parte dos tintos espanhóis, portugueses, argentinos, chilenos e os brasileiros. Ideal para carnes vermelhas, churrascos, molhos condimentados e à base de vinho, e alguns peixes de gosto muito marcado, como sardinha ou hadock.
Doce: Os mais famosos são Porto, Madeira, Málaga, Moscatel, Sauternes, Jerez doce (há um tipo de jerez bem seco), Tokai húngaro e os champanhes doces. Vão bem com sobremesas ou em lugar do café. Acompanham o queijo quando este substitui a sobremesa.
Verde: Oriundo da parte antiga de Portugal, o Minho é feito de uvas verdes, com menor teor de açúcar e maior de tanino e ácidos. É “ligeiro”, baixo teor alcoólico, gosto acidulante, deliciosamente picante, ideal para o verão. Tem vida curta e deve ser consumido jovem, com no máximo um ano. Um vinho verde de dois anos está praticamente morto. Para saber se não está velho, veja a cor: deve ser claro. Pode ser branco ou tinto e deve ter sua região demarcada no rótulo, assim como o “selo de origem”, timbrado e numerado.
Espumante: O mais famoso e clássico é o Champagne, feito com métodos seculares estritamente regulados por lei. Obtido a partir de uma segunda fermentação feita na própria garrafa. O gás é natural. Quando é feito fora dessa região, é apenas vinho espumante, sendo indevido o uso da palavra “Champagne”, embora hoje -disseminada em vários países.
Há espumantes em outras regiões francesas, chamados de vins mousseux, como os do Loire. Por causa da uva e do solo, costumam ser mais frutados (sabor pronunciado da fruta) e menos ácido que o Champagne. Na Espanha, faz-se um bom espumante, o Codorniú, o mais próximo do Champagne. Há também o famoso Asti italiano, e muitos outros excelentes feitos com umas Pinot Noir e Chardonnay. São menos ácidos por causa do clima quente. Na Califórnia, fazem-se ótimos espumantes.
Você pode ser um expert – Quem quer conhecer bem vinhos tem um longo caminho pela frente. E o bom é justamente não ter pressa. O primeiro passo é começar a ler sobre o assunto. Depois, procure escolher o vinho certo para a ocasião e a comida, para não misturar indevidamente os sabores. A terceira etapa é provar com atenção. O paladar só aprende com treino. Procure descobrir as diferenças entre os tipos de uva. Ate descobrir uma “família” de sua preferência. Concentre-se nela, pesquise as marcas, descubra as sutilezas. Há mais variedades pelo mundo do que qualquer expert possa conhecer profundamente. Portanto, ser especialista em uma ou duas variedades é melhor do que conhecer ligeiramente várias.
Como servir: Um vinho ligeiro e jovem deve preceder um branco forte, que vai sublinhar o sabor de um tinto servido em seguida. Do mesmo modo, os secos sempre precedem os doces. Se esta escala não é respeitada, um deturpa o sabor do outro. Pode-se servir apenas um tipo, desde que combine com o clima e a comida. Na dúvida, sirva Champagne ou vinho brancos fortes secos, que combinam com quase tudo.
A quantidade: Uma garrafa contém de seis a oito generosos copos semicheios. Em uma refeição rápida, um pode bastar. Em um longo jantar, cinco ou seis podem não ser muito. Num jantar íntimo, servir um branco com a entrada, um tinto com o prato principal e estourar um Champagne na hora da sobremesa é muito requintado. Mas as circunstancias, o humor dos convidados e a duração da refeição são decisivos. REGRA DE OURO: seja generoso, mas jamais inoportuno.
A temperatura: Nosso olfacto, onde está a maior sensação do gosto, é sensível aos elementos que evaporam. Costuma-se dizer que um vinho tinto está na temperatura ideal quando começa a evaporar. Isso acontece na temperatura ambiente (os franceses chamam de chambre), porque o vinho tinto tem um peso molecular maior que o branco e é menos volátil. Só que a temperatura ambiente não é o calor do verão brasileiro. Um vinho Bordeaux não deve ser resfriado, quando o clima está temperado, enquanto um Beaujolais pode ser tratado como um branco, porque é muito volátil. Um vinho branco seco não deve ser muito gelado, enquanto um frio forte é necessário para equilibrar a riqueza de um vinho muito doce. Portanto, tratar da mesma maneira todos os tintos e todos os brancos é uma simplificação grosseira. O chambré, para os franceses, é em torno de 16° a 18°. Assim, quando um brasileiro no verão refresca o tinto até esta temperatura não está cometendo nenhum erro. Neste caso, é melhor fazê-lo em um balde com gelo e bastante água, não na geladeira e jamais no congelador. Acima dos 18° o vinho tinto começa a de desequilibrar porque o álcool evapora mais rápido. Os brancos secos devem ser servidos entre 8° e 9°, e os suaves, entre 5° e 6°.
O copo certo: Os provadores oficiais costumam usar uma taça rasa de prata, sem pé, que melhor reflicta a cor do vinho no ambiente escuro das caves. Mas o consumidor comum deve escolher um copo de cristal fino em forma de tulipa, isto é, com pé alto, mais largo na base do bojo e que afunila em direcção à boca, para melhor reter o aroma. Seguindo a mesma linha, há vários tamanhos, do pequeno, para jerez, à flute, de Champagne, fina e comprida. Muitos experts usam apenas o copo padrão tulipa, com 15,5 centímetros de altura para todos os tipos de vinho.
O primeiro gole: Depois de colocar o vinho até dois terços do copo, examine a cor. Gire suavemente para desprender o bouquet (com exceção dos espumantes) e aspire. Molhe um pouco a boca para perceber a acidez e adstringência. Em um vinho bem equilibrado, uma não predomina sobre a outra. Tome então um gole moderado, retenha na boca, passe para debaixo da língua e deixe escorrer lentamente pelos lados até a garganta. É embaixo da língua que se percebem melhor o vigor e a consistência do vinho. Só os grandes conhecedores são capazes de determinar a safra e a idade de certos vinhos. Os consumidores regulares podem, no primeiro gole, determinar pelo menos o corpo, se é ligeiro, forte, seco, doce ou licoroso. Os vinhos ordinaires (comuns) são conhecidos pelos leigos só algum tempo depois de tomar: se são bem digeridos, se não provocam amargo na boca ou dor de cabeça são bons.
O rótulo: Na hora de comprar, examine tudo o que vem escrito: o tipo de uva, a procedência, o nome do vinhedo, a idade, o produtor. Assim, você terá mais chances de escolher o vinho certo. No Brasil, já se está começando a colocar todas essas informações nos vinhos finos e é grande a oferta de vinhos feitos com castas nobres europeias. No vinho francês, busque a expressão appelation contrôlée, garantia de qualidade. A palavra château, em geral, identifica um Bordeaux e clos indica um Bourgogne. Os melhores costumam ser engarrafados no vinhedo. No rótulo vem escrito: mis en bouteille au château, mis en bouteille au domaine, ou mis en bouteille à la propriété. Os Bourgogne, os Beaujolais e os Côtes du Rhône são identificados assim mesmo no rótulo. Ao comprar um vinho italiano, busque as palavras Barbera, Grignolino, Freisa, Dolcetti e Nebbiolo, os melhores. Entre os brancos, escolha os Verdicchio, Frascati ou Soave. Quando estiver escrito denominazione di origine controllata (DOC) ou denominazione de origine controllata e garantita (DOCG), pode confiar que são de primeira linha. Veja também qual a origem: os melhore são do Piemonte, Toscana e Vêneto. Os melhores vinhos alemães são feitos de uva Riesling e isso vem especificado no rótulo. Nos superiores, vem escrito qualitätswein mitprädikat; nos de boa qualidade, aparece a palavra qualitätswein; e tafelwein nos vinhos comuns.
Como guardar: O ideal é um lugar escuro, com temperatura fresca constante (não gelada), sem trepidações e livre de odores externos. A garrafa fica deitada para que a rolha fique molhada e não resseque, evitando deixar entrar o ar. Não permita que limpem a poeira das garrafas, mexendo-as. Uma vez guardadas, devem ficar imóveis, descansando. A temperatura ideal de adega fica entre 16° e 18°.
Dr. Aymar Sperli, presidente da Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho.
Fotografia: Enéas Bispo de Oliveira
Fotografia: Enéas Bispo de Oliveira