O Ritual Diário
Minha irmã, que já se acostumou com a rotina do museu e com as excentricidades da arte contemporânea, conta que a senhora da limpeza, cujo nome carinhoso é Dona Aurora, tem um ritual quase sagrado. Pontualmente às sete da manhã, antes da abertura ao público, ela inicia sua jornada pelos salões. Cada obra é observada com uma mistura de curiosidade e pragmatismo. Não há julgamento estético prévio, apenas uma avaliação funcional: aquilo ali é sujeira a ser removida ou uma peça que merece ser preservada? A pergunta, sempre a mesma, é dirigida à minha irmã ou a qualquer outro funcionário que esteja por perto, e é proferida com um sorriso nos lábios e um brilho nos olhos, como se fosse um enigma diário a ser decifrado.
A Perspectiva da Arte
O que para os curadores e críticos é uma complexa teia de significados, para Dona Aurora é uma questão de ordem prática. Uma instalação com sacos de lixo empilhados? Lixo. Um respingo de tinta no chão? Sujeira. Um amontoado de roupas velhas no canto da sala? Descarte. E é aí que reside a genialidade de sua pergunta. Ela nos força a confrontar a linha tênue que separa o intencional do acidental, o artístico do mundano. A arte contemporânea, em sua busca incessante por romper barreiras, muitas vezes se apropria de objetos do cotidiano, ressignificando-os. Dona Aurora, com sua sabedoria simples, nos lembra que, despidos de seu contexto e da intenção do artista, esses objetos voltam a ser apenas o que são.
A Essência da Pergunta
Amo essa senhorinha porque sua pergunta, em sua simplicidade desconcertante, é a mais fundamental de todas as questões artísticas. O que faz da arte, arte? É a intenção do artista? A aprovação da crítica? O valor de mercado? Ou é algo mais profundo, uma qualidade intrínseca que a distingue de um objeto qualquer? Dona Aurora, sem saber, nos convida a essa reflexão todos os dias. Ela nos lembra que a arte não é um dogma, mas um diálogo. E que, nesse diálogo, a voz do espectador, mesmo o mais despretensioso, tem um peso fundamental. A arte só existe de fato quando é percebida, questionada, e, por que não, confundida com algo a ser jogado fora.
A Arte é uma Conversa
Então, da próxima vez que minha irmã me contar sobre Dona Aurora e sua pergunta diária, não pensarei apenas na anedota engraçada. Pensarei na profundidade de sua sabedoria, na sua capacidade de despir a arte de suas pretensões e de nos lembrar que, no fundo, a arte é uma conversa. E que, às vezes, a pergunta mais profunda vem da pessoa mais inesperada, com um rodo na mão e um sorriso no rosto, pronta para decidir o destino de mais uma peça de arte contemporânea: "Isto é arte ou jogo fora?"
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