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sábado, maio 14, 2011

NÓS!



Por Isabel Lucas

Gosto de esplanadas. De estar sentada a ver passar os outros e a imaginar-lhes vidas. Normalmente estou de livro na mão mas esqueço-me dele para me fixar nos outros. Os que passam, as conversas que me chegam aos bocados num puzzle incompleto que tento construir. Às vezes a partir de frases do tal livro esquecido. E esqueço de mim. Mas depois faço dos outros o meu espelho. Nesse dia quente tinha esquecido o livro mas não a frase que falava de um plural. Um plural de mim, senti. "Esse delicioso nós." Disse-a uma mulher apaixonada sobre esse plural de que é feito um par amoroso, um lugar onde ambos se designam por "nós". Nó, laço, elo afectivo. Pessoas ligadas por algo único. E penso em "nós" e em como deixamos de o ser. Há um "eu" e um "tu" a separar caminhos que se cruzaram por breves instantes e formaram nesse curto tempo um "nós" entre milhões de outras possibilidades. Encontro. Inesperado, improvável. Um "nós" cauteloso. Logo a seguir, corrido, porque poucos de nós sabem esperar. Nós fomos. O verbo é conjugado no passado. Podia ser presente. Podia ser futuro. Todos os tempos. Foi. Fomos. Felizes e infelizes, doces e amargos, cruéis e apaixonados. Fomos. Insistentes, persistentes, desistentes, enfim. Nós não somos fáceis. Nós não sabemos o que fazer connosco. Mal-entendemos-nos, magoamo-nos, amamo-nos. Nós. Por vezes é impossível desfazer esse nó, o nó que faz de mim e de ti o "nós". Nesta cidade, há sinais de nós. Nestas ruas, neste bairro, nos livros, nos discos, nas comidas, em cada objecto. Eu queria que nós... e agora seguia-se uma lista imensa de desejos. Eu não queria que nós... e agora segue-se um enorme despejar de não desejos. Eu não queria que este delicioso nós deixasse de existir. Também não queria que este delicioso nós definhasse até que não houvesse nós nem na memória. Eu não queria que nós nos apagássemos. E nós já só somos uma imagem que se dilui enquanto os outros continuam a passar pela esplanada. Quente neste dia de Agosto em que eu estou singular. Um eu, sem nós.

Texto publicado no Diário Económico - Portugal
Dia 7 de Agosto de 2010

Fotografia: Enéas Bispo de Oliveira