terça-feira, abril 19, 2022

O "Herói" Vazio



Na mitologia clássica, o "herói" é um ser humano que consegue, em função de poderes divinos resultantes de sua concepção incomum, executar grandes feitos. Contrariamente ao que pensamos hoje, o herói clássico é um personagem trágico que se caracteriza por falhar no que mais importa. A jornada do herói clássico não nos oferece alguém que devamos imitar, mas nos alerta para os limites da capacidade humana para contornar o Fado (Destino). O herói nos ensina humildade, não voluntarismo.
Um exemplo de herói clássico é Aquiles, responsável por grandes feitos na Guerra de Troia, mas que morre cedo e vai para o Hades. Visitado por Odisseu, alguns anos depois, Aquiles declara ao amigo que preferia ter sido em vida o mais humilde dos escravos do mais cruel dos senhores a ser, como era, idolatrado pelas sombras do mundo dos mortos.
Um exemplo ainda mais perfeito seria Édipo, que desde criança executa grandes feitos e que, adulto, decifra o enigma da Esfinge, revelando-se um homem astuto e inteligente. No entanto, como outros personagens de sua história, ao tentar fugir do destino profetizado, cria as exatas condições que o tornam inevitável.
O herói pós-clássico, porém, enfatiza mais os feitos do que o destino final do herói. Partindo da concepção de que morrer é uma fatalidade (portanto, a morte não é um fracasso em si) e que a continuidade das instituições é responsabilidade de cada geração (portanto o herói não tem culpa se seus sucessores põem a perder o seu legado); a história do herói moderno o constrói como um antepassado mítico, um fundador, um modelo dos "bons tempos".
Um exemplo do herói pós-clássico é Artur, rei dos bretões, que unifica os povos da Britânia romana e que, por alguns anos, resiste com sucesso aos ataques dos invasores saxões; mas que termina a vida de maneira melancólica e precoce, morrendo com o reino que tentara construir.
É nesse sentido que quase todos nós conhecemos o arquétipo do herói. Igual em essência ao herói clássico primordial, mas com uma ênfase justamente no esforço que o grego antigo julgava infrutífero.
Temos também o anti-herói, um herói vazio, alguém que não é digno de nossa admiração (ou que nós não aspiramos a ser), mas que ainda assim executa feitos que admiramos ou cujos feitos tem uma escala muito menor, que impede serem chamados de heroicos.
O herói vazio é mais que um anti-herói (é um subtipo deste, claro) porque não realiza nada, mas ainda assim é considerado um herói. A diferença primordial entre o anti-herói e este herói vazio é que o anti-herói existe por si só, praticando os atos que pratica movido por sua própria essência, enquanto o herói vazio existe porque nós lhe atribuímos o que ele mesmo não pratica. Podemos dizer que o anti-herói ainda seria anti-herói no anonimato, mas nós escolhemos focar sobre ele em virtude de algo que ele representa, enquanto o herói vazio somente possui relevância porque nós o escolhemos.

O anti-herói tem uma história.

O herói vazio tem uma imagem, um episódio.

É possível construir uma longa narrativa em torno de um anti-herói porque ele pratica diversos atos anti-heroicos em sua vida. Mersault, o protagonista de O Estrangeiro, de Albert Camus, viaja à sua cidade natal para o funeral de sua mãe, mas choca a família com sua falta de luto e de modos no funeral, depois retorna à Argel, onde mora, para reencontrar uma colega de trabalho, com quem se envolve e com quem se relaciona sexualmente (na tarde do dia seguinte ao sepultamento de sua mãe), depois ajuda a um conhecido (sequer um amigo) a conceber um plano para estuprar e humilhar uma moça argelina que por ele se apaixonara, depois atrapalha o amigo quando este é ameaçado pelo irmão da moça estuprada (resultando no amigo ser gravemente ferido) e finalmente mata o agressor usando a arma do amigo ferido, mas depois termina de descarregar todos os tiros do revólver no cadáver do homem.
Exemplos de heróis vazios são as celebridades televisivas, como os participantes de reality shows, pessoas que nada fazem a não ser passar os dias em atividades lúdicas sem sentido e conversas rasas (ocasionalmente performando pornografia softcore para deleite de quem paga para ver isso).
Este homem é um herói vazio porque, apesar do potencial de anti-herói criado pelo absurdo da situação que viveu, ele se tornou uma celebridade que vive desse momento cristalizado no passado e constrói uma imagem pública completamente desproporcional.
Se você preferir, podemos concordar que Givaldo é um herói esvaziado, em vez de vazio desde a origem, porque a sua aventura possui uma grandeza anti-heroica.
A vantagem do herói vazio sobre o anti-herói mais tradicional é que ele pode viver do passado. Do anti-herói esperamos uma nova tolice cada dia, mas tolices cansam. Tanto assim que nomes notoriamente anti-heroicos duram cada vez menos na mídia, enquanto os vazios se perpetuam. Perpetuam-se porque nada fazem e por nada fazerem não criam tensão que pode levar à perda de influência.
O supremo encanto do herói vazio são os vídeos de react, em que uma pessoa originalmente irrelevante comenta situações que não viveu ou conteúdos que não criou (raramente oferecendo alguma observação inteligente).

Anti-intelectualismo

O anti-herói vazio e os vídeos de react formam dois vértices do triângulo da burrice — o terceiro é a tiktokização do conteúdo das redes sociais, que leva à necessidade de transformar tudo em "dancinha", até mesmo conteúdos sérios.
O triângulo da burrice se sustenta porque se alimenta do anti-intelectualismo, que é muito mais forte no Brasil do que no mundo como um todo, em média. O brasileiro não gosta do conhecimento. O brasileiro "não sabe, não quer saber e tem raiva de quem sabe" — e isto é muito mais que uma frase de efeito para uso específico.

Não sabe porque nosso sistema educacional é falho.

Não quer saber porque a nossa ideologia ensina que não é necessário saber, que saber pode até mesmo atrapalhar e que não saber pode até ajudar.
Tem raiva de quem sabe porque, nas frequentes situações em que sua ignorância lhe dá prejuízo ou lhe traz humilhação, o brasileiro reage agressivamente contra quem está acima de si na escala do conhecimento.
Um bom exemplo de anti-intelectualismo em ação pode ser encontrado agora mesmo no remake da novela "Pantanal". A original, de 1990, já fora bastante significativa nesse aspecto, mas o remake conseguiu tornar a trama ainda mais anti-intelectual e eu nem acreditava que isso fosse possível, considerando o que o original era.
José Leôncio é um fazendeiro semianalfabeto que vem ao Rio de Janeiro cobrar uma dívida e conhece uma socialite, Madeleine, com quem se envolve (por um estranho puritanismo do roteiro, esta era a única socialite virgem do Rio de Janeiro e possivelmente do Hemisfério Sul) e se casa. Na versão original da história, o devedor era coincidentemente o pai de Madeleine, um empresário arruinado pelo jogo e pelos gostos caros. Assim, o dinheiro gerado pelo trabalho do ignorante salva da falência o homem educado, mas decadente.
Depois de um episódio de choque cultural no Pantanal, Madeleine foge de lá trazendo o filho recém nascido, a quem cria no Rio de Janeiro, sem qualquer contato com a vida no campo.
Anos depois o filho, já adulto, vai visitar o pai, mas este estranha seus modos urbanos e sua recusa em montar a cavalo no primeiro dia em que chega à fazenda. Uma atitude sensata, diga-se de passagem, porque cavalgar é relativamente perigoso e não é algo que se aprende por mágica ou herança. Subir num cavalo sem ter costume ou ajuda pode facilmente resultar num osso quebrado ou até em tetraplegia.
No remake da novela ainda são acrescentados três elementos de estranhamento: Joventino, o filho, não foi ensinado a nadar (na versão original, se não me falha a memória, ele era até um bom nadador), é vegano (porque acredita que a pecuária faz mal ao planeta) e esquerdista (contrário ao latifúndio).
Por causa disso, Joventino é tachado de homossexual e diversos capítulos da novela são gastos com discussões estúpidas sobre a sua sexualidade — o que só fica definitivamente esclarecido quando ele "doma" a Juma Marruá… e aprende a montar cavalo (na nova versão estas partes da historia ainda estão no futuro).
É latente em Pantanal a valorização da "simplicidade" forte do homem do campo em face às debilidades do homem urbano, educado e bem informado. José Leônico, que não tem sequer o primário, não somente se mantém um grande fazendeiro em Mato Grosso do Sul, como ainda adquiriu várias fazendas pelo país, nas quais explora atividades diversas da pecuária. Enquanto isto, o pai de Madeleine, agora completamente arruinado, vive do dinheiro que Leôncio manda(va) para custear a educação do filho, dinheiro este administrado pela avó materna do menino.
Tadeu, o filho que José Leôncio teve com Filomena, uma prostituta com quem se amasiou, foi criado no Pantanal, com o pai, e representa o ideal puro do Brasil idealizado. Ele é o braço direito do pai e um homem de moral ilibada.
Joventino, o filho que José Leôncio teve com Madeleine, uma moça rica e estudada, nascida em uma capital, foi criado no Rio de Janeiro, tendo acesso a educação da melhor qualidade, representa o Brasil enfermiço, o Brasil indeciso. Ele é um inútil e uma pessoa inconfiável, de moral duvidosa.
Extrapolando da novela para a vida real, o herói que "nós" (o povo brasileiro) queremos é como Tadeu. Uma pessoa decidida, que sabe se aproveitar irrefletidamente das situações. Givaldo é como Tadeu, não apenas por ser ignaro, mas porque age por impulso.
O herói vazio pode ser também descrito como um herói fascista porque o fascismo valoriza a ação sem reflexão. A ação como reação ao momento.
Por não possuir conteúdo intelectual, por não possuir uma dimensão reflexiva e ser definido por um ato isolado ("transar com uma gostosa casada com um playboy bombadão") Givaldo é o perfeito herói vazio que o fascismo à brasileira idolatra.
Milhões se veem em Givaldo. Milhões invejam-no, não por sua mendicância, mas pela oportunidade que teve, e aproveitou, para humilhar alguém superior a si em conhecimento e nível social.
Um reflexo deste culto da ignorância é reduzir o indivíduo ao seu valor em dinheiro. E se você acha que eu inventei isso ou mesmo que é algo recente, escuta a "moda" de Tião Carreiro e Pardinho, intitulada "O Rei do Gado", datada de 1973:
De certa forma, a trama de "Pantanal" foi influenciada por esta canção e ambas influenciaram outra novela famosa, de 1995, intitulada… "O Rei do Gado".

Mas deixemos de lado o latifúndio e falemos de currais… eleitorais

O sistema proporcional

O sistema eleitoral proporcional tende a gerar instabilidade política e não é utilizado em nenhuma democracia consolidada do mundo — a não ser a Itália que, bem, é a Itália, o Brasil da Europa (Portugal não merece o epíteto, ao menos não mais). Ainda pior o nosso, que se baseia no voto único transferível.

Para entender porque isso temos que entender quais são os outros sistemas:

No sistema distrital puro (usado na maioria dos países da Comunidade Britânica e também nos EUA), cada distrito eleitoral elege um representante. Teoricamente, é possível um partido ter 40% dos votos populares e não eleger um deputado sequer, basta que outro partido supere seus 40% em cada um dos distritos. Esse sistema resulta na invisibilização dos partidos pequenos. Nos EUA, só há dois partidos com representação no Congresso e na Grã Bretanha, por muito tempo, também (hoje temos por lá, além do Conservador e do Trabalhista, também os Liberais Democratas, Unionistas do Ulster, Social-Democrático Trabalhistas, Verdes, Plaid Cymru (nacionalistas galeses), Alba (nacionalistas escoceses) e Nacionalistas Escoceses.
No sistema distrital misto (representatividade "suja"), cada distrito elege um (pequeno) número de representantes (de três a cinco, por exemplo), permitindo que o segundo e o terceiro mais votados tenham chance de ir ao Parlamento.
No sistema representativo puro, o nosso, não há distritos e os partidos em cada estado elegem bancadas proporcionais à quantidade de votos que têm.
Portanto, o partido e seus candidatos terem muitos votos leva à formação de uma bancada grande, arrastando outros candidatos menos votados.
Em 2006 Enéas Carneiro foi eleito deputado em São Paulo, com mais de 1,5 milhão de votos. Arrastou cinco outros candidatos de seu partido, dois deles com poucas dezenas de votos.

Em relação ao voto mesmo, há três sistemas principais:

Voto Único Não Transferível. Os candidatos mais votados em cada distrito são eleitos. As bancadas dos partidos não são proporcionais aos votos obtidos pelo partido. Nesse sistema, não adianta um candidato ter muitos votos se os outros tiverem poucos. Usado no Japão, na Jordânia, em Porto Rico, Coreia do Sul, Taiwan e Chile, entre outros.
Lista Partidária Fechada. Os votos são dados ao partido. O partido determina a ordem em que os candidatos serão eleitos (para o segundo nome ser eleito, é necessário que o partido tenha votos suficientes para uma bancada de dois nomes).
Voto Único Transferível ou Lista Partidária Aberta. Os votos são dados aos candidatos, e desta forma se determina a ordem de preferência dos candidatos para eleição.
No nosso sistema, de lista aberta, vale a pena o partido ter alguns nomes de peso, os "chamadores de voto", porque eles ajudam o partido a eleger nomes menos populares. Nesse sentido há dois tipos de chamados de votos: os ganhadores e os perdedores.
Um chamador "ganhador" é aquele que o partido espera que seja eleito. Como terá muitos votos, encabeçará a lista partidária (e talvez se torne um político de respeito no futuro) e arrastará os menos conhecidos porque seus votos aumentarão a bancada do partido.
Um chamador "perdedor" é aquele que o partido não espera que seja eleito (e talvez nem queira que seja). Ele só precisa ter votos numerosos, que contarão para o partido e ajudarão a eleger os candidatos com os quais o partido realmente se importa. Isto porque o "chamador" pode até não se eleger, mas seus votos se transferem ao partido.
Ainda é difícil saber em qual categoria de "chamador de voto" o Givaldo entrará (tudo depende da duração de sua fama entre a escória intelectual do país), mas ele certamente ajudará algum partido a eleger nomes para os quais os eleitores de Givaldo nunca votariam.

Resumo:

Givaldo é uma pseudocelebridade ("herói vazio") que reflete o gosto do povo brasileiro por pessoas incultas que nada tenham a acrescentar ao mundo (porque Narciso gosta do que vê no espelho). Por causa disso, partidos fisiológicos, que só se interessam pelo poder em si mesmo, o usam como ferramenta para manobrar o voto desses eleitores tolos que acham que estão fazendo "voto de protesto".

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