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Foto: Enéas Bispo de Oliveira |
"O sexo é uma fonte de perturbação nas relações entre os seres humanos".*
Em "O Dr.K. vai a banhos em Riva", Sebalt relata que, num tratamento termal no Norte de Itália, Kafka travou conhecimento com uma rapariga suíça "com ar muito italiano". Passam juntos as tardes, no lago de Garda, frente as paredes rochosas. Então, segundo Sebald, o Dr.K desenvolve "uma teoria fragmentária do amor sem corpo, em que não há qualquer diferença entre proximidade e ausência".
O Dr.K. pensa que pode passear com a rapariga que parece italiana pela margem do lago que vai de Riva para o Sul. E é isso que faz. Como tinha decidido estabelecer com ela uma relação da qual estivesse arredada a sedução, verbaliza todas as suas emoções, ao que julga sem censura. A sua intenção é deixar claro, a cada momento, que não pretende impressioná-la compondo um personagem diferente do que se julga. Quando passam pelo Hotel Europa, na via Catena, cruzam-se com o militar russo na reforma que é vizinho de mesa no Lido Palace. Este parece surpreendido por vê-los juntos. A rapariga saúda-o com simpatia. O Dr.K. dá alguns passos antes de observar que o russo não mostrou muito entusiasmo com o encontro:
-Talvez ele não tivesse gostado de ser reconhecido - disse. E, olhando para a vidraça do salão do Hotel Europa, viu um vulto fugidio atrás do reposteiro.
Vão caminhando e o Dr.K. vai-se tornando mais loquaz. Sobem na direcção da torre Bastione. Foi outrora, sob o domínio de Veneza, um bastião inexpugnável de defesa da povoação.
-E depois um paiol - acrescentou a rapariga.
Ele pareceu surpreendido.
-Porquê um paiol?
-Todas as construções, nas colinas das cidades com história, foram, num momento de declínio, degradadas por ocupantes bárbaros - disse ela, com ênfase forçado, como se recitasse.
Riram-se. O Dr.K. apreciou a forma como ela ria. Estava frio e quis imprimir mais vigor aos seus passos. O declive era grande, começou a suar e ela ultrapassou-o com facilidade. Passaram a linha da última casa. De uma chaminé saía um fumo branco que demorava a dissipar-se. A partir desse momento só havia vegetação, a parede quase a pique do monte Rochetta e as ruínas da torre clara, arredondada. Lá em baixo, no cais em frente do Hotel Europa, o barco com destino a Desenzano apitou. Do hotel saíram três pessoas, apressadas, arrastando malas.
O sexo é uma fonte de perturbação nas relações entre os seres humanos.Em Riva de Garda o Dr.K. explica a sua teoria a uma jovem que caminha à frente, enquanto se aproxima, tanto quanto se pode estar de uma bela mulher cuja aparência esconde a causa da sua presença em Riva. Aproxima-se tendo o cuidado de não deixar que essa proximidade perturbe a relação fundamental que se estabeleceu entre eles. Não permitir que nenhuma ilusão romântica, nenhuma fatalidade biológica, nenhum movimento dos corpos acelere a ligação, determinada apenas pela afinidade de pontos de vista, pelo apreço comum, pela graça da expressão, o sotaque, a sintaxe, a prosódia, o colorido da face, o jeito do cabelo, a forma como o corpo se mexe ao caminhar, a decisão, as funções executivas, as diminutas imperfeições. Perto um do outro, mas como dois seres humanos. Sem medo das palavras, mas sem o constrangimento da cópula. E vão assim, quase lado a lado mas ao mesmo tempo longe, como amantes que mantêm um registo epistolar sem pressas, tendo o tempo por eterno, fingindo não notar que os exércitos apressam as incorporações forçadas e as famílias recolhem os animais, as sementes, as mantas, as arcas e a forragem para longe do movimento das tropas.
A italiana caminhava agora à frente. Misturava palavras simples, desconhecidas do Dr.K. e que eram provavelmente os nomes das flores que colhia, dos arbustos em que ia tocando com graciosidade. E também nomes guerreiros, sonantes. Dizia-os em voz alta, cantarolando. Caminhava depressa, por vezes quase em desequilíbrio, bordejando o lado do trilho que se abria ao lago. O Dr.K. estava cansado. Ouvia. Mas continuava a caminhar. Sabia que ao chegar ao Bastione continuariam sozinhos. O sol de outono rompeu uma fresta de nuvens atrás dos montes brancos de Arco. Ela voltou-se, com a luz pelas costas. Estava calmo, embora o coração batesse tão alto que era quase um escândalo a forma como soava, nos seus ouvidos e no ar rarefeito da colina. Não haveria a obrigação e a confusão do sexo.
*Texto: Luís Januário - Jornal i/Lisboa
[Texto publicado na edição do dia 19 de Maio de 2012]
-Todas as construções, nas colinas das cidades com história, foram, num momento de declínio, degradadas por ocupantes bárbaros - disse ela, com ênfase forçado, como se recitasse.
Riram-se. O Dr.K. apreciou a forma como ela ria. Estava frio e quis imprimir mais vigor aos seus passos. O declive era grande, começou a suar e ela ultrapassou-o com facilidade. Passaram a linha da última casa. De uma chaminé saía um fumo branco que demorava a dissipar-se. A partir desse momento só havia vegetação, a parede quase a pique do monte Rochetta e as ruínas da torre clara, arredondada. Lá em baixo, no cais em frente do Hotel Europa, o barco com destino a Desenzano apitou. Do hotel saíram três pessoas, apressadas, arrastando malas.
O sexo é uma fonte de perturbação nas relações entre os seres humanos.Em Riva de Garda o Dr.K. explica a sua teoria a uma jovem que caminha à frente, enquanto se aproxima, tanto quanto se pode estar de uma bela mulher cuja aparência esconde a causa da sua presença em Riva. Aproxima-se tendo o cuidado de não deixar que essa proximidade perturbe a relação fundamental que se estabeleceu entre eles. Não permitir que nenhuma ilusão romântica, nenhuma fatalidade biológica, nenhum movimento dos corpos acelere a ligação, determinada apenas pela afinidade de pontos de vista, pelo apreço comum, pela graça da expressão, o sotaque, a sintaxe, a prosódia, o colorido da face, o jeito do cabelo, a forma como o corpo se mexe ao caminhar, a decisão, as funções executivas, as diminutas imperfeições. Perto um do outro, mas como dois seres humanos. Sem medo das palavras, mas sem o constrangimento da cópula. E vão assim, quase lado a lado mas ao mesmo tempo longe, como amantes que mantêm um registo epistolar sem pressas, tendo o tempo por eterno, fingindo não notar que os exércitos apressam as incorporações forçadas e as famílias recolhem os animais, as sementes, as mantas, as arcas e a forragem para longe do movimento das tropas.
A italiana caminhava agora à frente. Misturava palavras simples, desconhecidas do Dr.K. e que eram provavelmente os nomes das flores que colhia, dos arbustos em que ia tocando com graciosidade. E também nomes guerreiros, sonantes. Dizia-os em voz alta, cantarolando. Caminhava depressa, por vezes quase em desequilíbrio, bordejando o lado do trilho que se abria ao lago. O Dr.K. estava cansado. Ouvia. Mas continuava a caminhar. Sabia que ao chegar ao Bastione continuariam sozinhos. O sol de outono rompeu uma fresta de nuvens atrás dos montes brancos de Arco. Ela voltou-se, com a luz pelas costas. Estava calmo, embora o coração batesse tão alto que era quase um escândalo a forma como soava, nos seus ouvidos e no ar rarefeito da colina. Não haveria a obrigação e a confusão do sexo.
*Texto: Luís Januário - Jornal i/Lisboa
[Texto publicado na edição do dia 19 de Maio de 2012]
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