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sexta-feira, julho 27, 2018

Biotônico Fontoura

No meu tempo de criança o sistema era bruto.
Diz-se que a molecada de hoje tá crescendo mufina pra vida porque não sente mais frustração. Os pais não deixam. Vou te contar como era no meu tempo de criança.
Quando a gente estava se sentindo fraco (e nossos pais sempre nos viam assim!), mamãe comprava logo um frasco de Biotônico Fontoura. Até hoje me lembro do gosto ferroso! Uma propaganda antiga desse remédio apresentava um leão quebrando uma jaula e perseguindo um pobre coitado, com os seguintes dizeres: “Biotônico Fontoura: dá fome de leão!”. Era indicado para anemia, neurastenia, debilidade e tuberculose. Prometia, também, o levantamento geral das forças, desaparecimento do nervosismo, eliminação da depressão nervosa. Vinha escrito na embalagem: “Regenera o sangue, tonifica os músculos, fortalece os nervos”. Alguns coleguinhas gostavam de beber Biotônico Fontoura porque tinha álcool. Diz-se que um pegou até um porre de Biotônico Fontoura! Depois disso a mãe dele escondeu o frasco. Naquela época as crianças não prestavam!
Quando mamãe não se dava por satisfeita com o poder do Biotônico fazia a famosa e temida mistura: Biotônico com Emulsão de Scott e mastruz com leite! Tinha gente que já tava morta, mas revivia só de sentir o cheiro daquilo!
Emulsao de Scott era uma prova de que Satanás existe! Era feito à base de óleo de fígado de bacalhau. Uma propaganda dizia: “não haveria crianças débeis se todas tomassem Emulsão de Scott”. Era uma ameaça! Ninguém que sobreviveu à Emulsão de Scott esquece aquele rótulo com um pescador carregando um imenso bacalhau nas costas! Era o famoso “Tônico das gerações”! Algumas propagandas tinham a audácia de mentir: “Protetor da infância, agradável ao paladar”. Mas, quando?! Era indicado para pessoas pálidas. 
O moleque era obrigado a tomar uma talagada dessa mistura mortal em jejum, antes do café da manhã! Diz’que limpava os intestinos. Emulsão de Scott era tipo peixe cru com raiz! As mães mais perversas misturavam com Calcigenol Irradiado! Nem parecia que elas amavam a gente, mas amavam! Não conheço um imundície que diga que gostava de Emulsão de Scott! Agora, tem gente que diz que tomou tanto isso que até hoje a fome não passou! E tem aqueles que se viciaram tanto que até hoje tomam. Ah! Tinha também o fortificante Combiron! Naquele tempo as mães morriam de medo da gente ficar intanguido!
A gente tinha pavor de ficar com a garganta inflamada, o que não era difícil, pois vivíamos na rua, pegando sol e sereno. Nessas horas vovó aparecia com sua especialidade sádica: "embrocação na garganta"! Vovó misturava mel, andiroba, copaíba, alho e lavagem de água morna num chumaço de algodão. Aí enrolava no dedo e enfiava na garganta da gente girando aquilo para todos os lados como se estivesse puxando o demônio para fora! O dedo entrava fundo que parecia uma vara! A gente ficava com os olhinhos revirando, a lágrima escorrendo e, ai de quem reclamasse! “Deixa de ser frouxo!”
Vez ou outra passavam uns homens de uniforme amarelado com as pistolas de vacinação contra varíola, sarampo, tétano, que faziam toda a molecada se esconder no mato ou debaixo da cama! Era uma pistola sem agulha, mas a dor que causava era de fazer o cabôco tremer! Com o tiro, o líquido penetrava no couro a ponto de cutucar a alma do desgraçado! Outro terror da molecada era o “Fura Dedo”! Bastava alguém gritar “lá vem o Fura Dedo!” e por alguns minutos parecia que não existia mais criança no mundo! O Fura Dedo andava de casa em casa fazendo o teste da filariose, furando o dedo mindin das crianças! Diziam que quem não furasse o dedo ia ficar com uma perna grande e a outra pequena! Às vezes, Satanás passa dos limites!

Texto: Márcio Couto

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