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sexta-feira, março 15, 2013

A Obscenidade e Deus*


Em 1949, Henry Miller publica um ensaio notável como resposta aos seus implacáveis censores, se inicia com o provocativo argumento de que "falar de obscenidade é quase tão díficil quanto falar de Deus". Mais que provocação, porém, a analogia sugerida pelo autor de Sexus supões uma afinidade de base entre os dois termos em questão: se o obscenidade aproxima-se do divino é porque ambos excedem o humano. Signos da "obscura noite da alma", esses conhecimentos secretos permanecem interditados ao mundo social, só se desvelando ao preço de sua própria falsificação.
Por certo, uma aproximação tão inesperada entre Deus e o sexo, tal como formulada por Miller, também visava chocar as boas consciências de uma sociedade que, valendo-se de seus últimos cartuchos, resistia em aproximar os frutos proibidos da imaginação pornográfica dos ideais da arte. De fato, nas mentalidades da época havia pouco espaço para acatar as fabulações eróticas que ousavam escapar das tradicionais zonas de tolerância onde eram confinadas. Seja como for, não deixa de surpreender que, tanto para o escritor, quanto para seus censores, o sexo ainda era sinônimo de transgressão.
Passados mais de meio século, porém, os contornos dessa paisagem mudaram de forma significativa: uma vez retirado do gueto que lhe garantia a marginalidade, o erotismo vem sendo cada vez mais integrado ao tecido social, pelo menos no circuito urbano do Ocidente. A ambição subversiva de autores como Henry Miller parece ter perdido sentido num mundo onde a prática da transgressão vem sendo cada vem mais normalizada pelo mercado.
Com efeito, a proliferação de imagens sexuais que a indústria cultural vem colocando em circulação no decorrer das  duas últimas décadas, condenando o erotismo à plena visibilidade, trabalha no sentido de neutralizar a vocação transgressiva da sexualidade. Daí a existência de todo um aparato midiático - no caso do Brasil, implantado durante o período da ditadura e consolidado ao longo das décadas seguintes -, que se encarrega de instrumentalizar o corpo, saturando o imaginário com promessas de prazer. O imperativo do gozo tornou-se palavra de ordem, cultivada à exaustão para preencher o vazio original que é condição de toda fabulação livre. Desnecessário lembrar que, uma vez ocupada essa vacância, as possibilidades de criação de uma arte erótica realmente se tornam cada vez mais minguadas.
Diante dessas evidências, impõem-se algumas questões. Que práticas sexuais correspondem a esses dispositivos sociais? Quais seriam seus imaginários privilegiados? Ora, as vigorosas reflexões que Jorge Leite Jr. nos apresenta em Das Maravilhas e Prodígios Sexuais vêm  justamente contribuir para a compreenção desse fenômeno complexo e recente, oferecendo ao leitor uma generosa etnografia das práticas e dos imaginários eróticos da contemporaneidade.
Propondo-se a analisar a produção pornô da atualidade, o autor vasculha o tal negócio do "entretenimento para adultos" para revelar suas particularidades internas, sejam intituladas "bizarras", "sadomasoquistas" ou "fetichistas". Interessa-lhe delimitar o campo do que é vivido hoje como "perversão sexual" ou como "gozo ilegítimo", escapando às convenções socias do corpo considerado sadio, normal ou natural. Trata-se enfim, como ressalta o autor, de conhecer uma segmentação de mercado que supõe o sexo como diversão, ajustando-se perfeitamente ao intuito de espetacularização que orienta a vida moderna.
O primeiro capítulo discute a oposição entre erotismo e pornografia, mostrando que esse debate pode ser entendido como um conflito simbólico, nos termos de Pierre Bourdieu. Assim, a representação obscena recebe um rótulo ou outro dependendo de sua legitimidade em determinados grupos estabelecidos na hierarquia social. A manipulação de tais conceitos mostra-se estratégica nos jogos de poder para a manutenção das estruturas de privilégios e distinções sócio-econômicas. Não é por outra razão que o próprio autor faz a acertada opção de evitar sentidos ou qualitativos quando emprega a palavra "pornografia", respeitando tão somente o sentido histórico do termo.
Em seguida, Jorge Leite Jr traça uma breve história da pornografia, de seus primórdios renascentistas até o surgimento da produção obscena como negócio específico, focado mais exclusivamente na excitação sexual do público. Nesse percurso, a fotografia e o cinema, aparatos técnicos indissociáveis do entretenimento como modo de vida moderna, são analisados como traços fundamentais no desenvolvimento da milionária indústria pornográfica.
Já o capítulo terceiro aborda o instigante tema do humor dentro da pornografia. Afinal, de que se ri no universo obsceno? Questão importante, já que o riso aparece como elemento historicamente incômodo na cultura ocidental, desafiando tanto a seriedade do saber oficial quanto a ideologia da afetividade romântica. Humor e sexo juntos compõem uma fórmula perigosamente transgressiva que os poderes da religião e da ciência procuram exorcizar, circunscrevendo-a como delinqüência ou patologia. Daí também o olhar incriminador ao corpo da mulher que, para o imaginário masculino, parece reunir a desmedida erótica e a forma estranha, provocando medo e gargalhada, apreensão e fascínio. Ou, como propõe o autor em pertinente alusão ao conhecido trabalho de Bakhtin sobre Rabelais, trata-se aqui de um "corpo grotesco".
Por fim, os dois últimos capítulos buscam justamente definir em detalhe essa corporeidade grotesca e extraordinária. Procurando as origens das incríveis façanhas sexuais da pornografia bizarra nos conceitos de monstruosidade, bufonaria e freak show, Jorge Leite Jr trabalha a idéia de uma sexualidade espetacularizada e centrada na diferenciação extrema das capacidades e formas físicas. Em seguida, analisa cinco tópicos que considera essenciais na produção contemporânea do gênero: o sexo anal, os prazeres escatológicos, a capacidade elástica do aparelho genital, os rituais eróticos de dor e prazer e o corpo da travesti.
Valendo-se de tal percurso, Das Maravilhas e prodígios sexuais termina por sugerir que, se a pornografia pode ser entendida como a versão deformada do erotismo, o "sexo bizarro" representa sua extensão mais radical. No limite, é um show que, a exemplo daqueles da Antiguidade, apresentam maravilhas e prodígios da natureza, visando a provocar sensações e sentimentos igualmente extremos no público. Daí sua íntima relação com  o monstro, implicando uma atividade que só se realiza plenamente ao se "mostrar". Lembra-nos o autor que o corpo grotesco e monstruoso evoca sempre "a super-exposição daquilo que já é extravagante por si, reiterando explicitamente o excesso, o hiperbólico". Trata-se, portanto, do excesso do excesso.
Retornando ao Henry Miller, nesses sombrios tempos de falsificação do erotismo, falar de obscenidade continua sendo tão difícil quanto falar de Deus.

*Eliane Robert Moraes é professora titular de Estética e Literatura na Puc-SP e no Centro Universitário Senac-Sp. Atua como crítica literária e publicou, dentre outros, os livros: Sade - A Felicidade Libertina. O Corpo Impossível. Lições de Sade - Ensaios Sobre a imaginação libertina.

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