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domingo, outubro 14, 2012

As praias da Riviera lusa

Casa do Marco - Obra do arquiteto Raul Lino em Azenhas do Mar.
Foto: Enéas Bispo de Oliveira

Texto de Pedro Adão e Silva/Revista Única

Lord Byron terá escrito uma parte significativa do poema autobiográfico, "Childe Harold", em Sintra. Sabemos que se fixou no Hotel Lawrence e que encontrou inspiração no "variegado labirinto de montes e vales" que com "o azul fluido de um mar sem rugas" compunha o "glorioso Éden de Sintra". O que não sabemos é se o poeta inglês chegou a ver, com olhos de proximidade, as magníficas praias do concelho. Não sabemos, mas podemos suspeitar, que avistou o abismo da Praia da Aguda, caminhou pela falésia da Praia Grande, desceu até à Praia das Maçãs e, numa jornada mais longa, poderá ter mesmo chegado ao Magoito. Nessas vistas deslumbrantes, Byron terá encontrado a confirmação do que era para si a maior tragédia humana: a perfeição que não estava ao alcance do homem.
Em 1830, a autora anónima de "The Young Travellers in Portugal", descreveu este pedaço de praias como uma "massa de rochas que correm ao longo da costa e entram pelo mar dentro arrogantes, com braços gigantescos". Nos nossos dias, ainda podemos sentir a grandiosidade oceânica que nos envolve nestas praias de imponência majestática. A natureza aqui continua a ter um sentido agudo que remete para a perfeição feita à medida dos escritores do romantismo.
A persistência da natureza em expressão avassaladora coexiste com uma Portugalidade idiossincrática, ainda hoje notória nas várias casas que nos empurram para o imaginário de Raul Lino. Ao lado do mar imponente e dos areais que nos dias de vento incansável ganham um aspecto desolador, estão as habitações em tom "português suave". Esta áurea balnear na qual se combina o romantismo com um nacionalismo peculiar, inventado pela exaltação patriótica feita de pequenos gestos estéticos, faz das praias de Sintra um cruzamento paradoxal.
Nas Azenhas do Mar, a coexistência de contrários torna-se particularmente visível. De um lado, um pórtico com versos em azulejos e ornamentos bordados, retirados da tradição arquitetónica de diversas regiões, inclina-nos para o conforto burguês que reinventou a identidade nacional na primeira metade do século XX; de outro, o mar imponente, que luta contra os braços de rocha que tentam rasgar as vagas poderosas, recorda-nos a supremacia do imaginário romântico.
Mas se esta tensão existe em redor das Azenhas do Mar, na Praia Grande ela desvanece-se. Aí, a força do mar é hegemónica. No extenso areal, emparedado a sul por uma escarpa em gruta que identifica a praia e a norte pela piscina de água atlântica - parte integrante do hotel com vista quase dentro do mar - as vagas obrigam a uma atenção redobrada dos banhistas, que correm sempre o risco de serem arrastados pela rebentação poderosa. Desde os cafés que cobrem a estreita marginal junto à praia, pode invariavelmente observar-se as lutas inglórias dos surfistas e dos banhistas temerários com as ondas. Ambos procuram alcançar uma fronteira que os românticos não hesitariam em classificar intransponível e entrar num mundo visto como inacessível. Na Praia Grande há uma coragem notável nas mergulhos no mar e nas ondas surfadas. Uma coragem que não é apenas física.
Estoris, o berço do surf em Portugal. O percurso de terras pedregosas que liga Almoçageme ao Guincho, passando ao largo do Cabo da Roca, é de uma grandiloquência que não escapa aos olhos de ninguém. A enseada grandiosa, que desce junto à estrada, ao longo da encosta da serra, vai revelando o Guincho, uma praia onde as ondas e o vento alternam em investidas que afastam os mais intrépidos banhistas da sua zona de conforto. Há em Portugal poucos lugares com uma beleza tão sumptuosa. Uns quantos quilómetros depois, percorrida a marginal junto à Boca do Inferno, somos recebidos pelo aconchego contrastante da baía de Cascais. Ramalho Ortigão descrevi-a como tendo uma "água serena como numa tina e a brisa tão suave que não faz ondear uma fita nos chapéus  das senhoras sentadas à sombra das suas barracas". Hoje, os ambientes são outros, mas em Cascais inicia-se a longa marginal que liga a Lisboa e que, através dos Estoris, se mantém refúgio burguês da Grande Lisboa.
Curiosamente, foi nas praias dos Estoris que nasceu o surf em Portugal. Locais simbólicos da alta burguesia - apelidados de Riviera portuguesa -, as praias da marginal, com o seu clima luminoso, passaram a albergar o ambiente de contracultura que erradamente tende a ser associado ao surf. Depois de nos anos 50 Pedro Martins de Lima ter trazido o surf para Portugal, a Linha foi tornando a Meca do surf urbano. Carcavelos, com o Forte de São Julião da Barra na extremidade, tem hoje uma imagem que é indissociável das muitas pranchas dentro de água e dos surfistas divididos entre conversas amenas no parque de estacionamento, enquanto vestem o fato ou aguardam o momento certo para entrar no mar.
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AS PRAIAS DE OUTRORA

Para um lisboeta do século XXI, é impensável que Algés ou Pedrouços tenham, no passado, sido praias aristocráticas, deitadas sobre o Tejo - que Ramalho descrevia como "um pequeno mediterrâneo, que cintila sob a bruma aquática como um peito de aço coberto por um véu de gaze, batido pelo largo sol". Ao lado da Torre de Belém é inconcebível vermos "as cores dos vestidos de verão, dos chapéus de sol abertos, das bandeiras desfraldadas  que produzem sob o sol uma grande mancha alegre, ridente, cheia de luz, no meio da areia fulva". Se bem que seja ainda possível vislumbrar casas com vestígios balneares, o aterro e a expansão urbana fizeram desaparecer praias outrora muito concorridas. Hoje,  atravessada a linha de comboio, resta um terreno entregue às gaivotas, que dividem o espaço exíguo com alguns pombos, revelando a colisão de dois mundos: de um lado, uma miragem de praia; de outro, a malha urbana, com elementos de decadência. O que se vê é um quadro de detritos, composto por barcos semiabandonados acompanhados por hortas minúsculas, e uma sucessão de braseiros improvisados, que servem certamente para sardinhadas escondidas na cidade. Pode ser que um dia aquelas "praias" voltem a ser praias.
  



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