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quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Tabletes só de chocolate


Tabletes só de chocolate. Sou do papel não sou do iPad. Gosto de tudo no papel. Da textura macia, do cheiro que lembra cheiro de coisas por estrear. No papel acontecem as palavras. Mesmo que escreva num computador preciso do print para corrigir, para ler o texto. No computador, os olhos criados por livros não conseguem ver a folha, a esquadria, a tensão da frase, o recorte da pontuação. Gosto do papel dos livros novos, acabadinhos das impressoras, gosto do papel amarelado e rugoso dos livros velhos, onde se encontra ao virar da página um bilhete para a ópera ou o teatro, um apontamento, foi há 20 anos, onde é que eu estava nesse dia? E com quem? E o bilhete vira madalena de Proust. O papel sabe a memória.
Sei os livros que levei para aqui, os que levei para ali, os que deixei esquecidos num avião, num banco, num quarto de hotel, os que perdi. Sei os livros de que gosto muito. E gosto de revistas lustrosas e nunca lidas, nunca folheadas, à espera que as dedilhe pela primeira vez. Gosto de jornais de sábado com o pequeno-almoço, onde começo por ler as pequenas antes das grandes, onde criei hábitos de leitura, rubricas, colunas, gente que escreve como eu. Gosto das surpresas das notícias, gosto dos broadsheets que se encarquilham e mascarram os dedos, gosto dos suplementos e das revistas, gosto de regressar a um jornal como quem regressa a um amigo. Não tenho prazer em ler uma revista num iPad, não me dá gosto o touchscreen. Acho o nome iPad, com as maiúsculas e as minúsculas exibicionistas, uma vaidadezinha. Que interessa? IPad? iPad? IPAD? Não preciso de fotografias cinematográficas, preciso de lustro e de sombra, preciso de as sentir como matéria, substâncias táteis  que vão-se amachucando e envelhecendo nas minhas mãos. Não quero ecrãs nem três dimensões. Gosto das duas dimensões, gosto de larguras e comprimentos, gosto dos jornais que esvoaçam num dia de vento como papagaios. Gosto do virar da página e sei onde estão as coisas.
Não quero ler o "Guerra e Paz" num iPad, muito menos no Kindle. Quero ler o "Guerra e Paz" na minha velha edição de bolso, com pontas dobradas em pequeníssimos triângulos da usura do tempo, com os bordos comidos pelos dedos, a capa original, as centenas de folhas finas que tornam a leitura na cama um pouco mais difícil porque o livro é pesado. Gosto desta dificuldade. Do peso dos livros. Gosto de sair de casa com um livro ou uma revista dentro da mala para o caso de ter de entreter o tédio num desses departamentos da vida quotidiana onde somos obrigados a esperar. Um Kindle precisa de bateria e tem umas horas de 'autonomia'. Horas? Os livros e revistas de papel têm a autonomia da eternidade. Gosto de bibliotecas. Gosto de arquivos. Gosto de fotografias de papel. Quem guarda mails? Não quero um texto, quero um livro. Não gosto da civilização descartável.
Sou do papel e do papel serei. Cada vez que me falam na morte do papel revolto-me. Nada pode substituir um bloco-notas quando tenho uma ideia. Onde guardo eu uma ideia num iPad? Não sei como guardá-lo lá dentro, rodeada de informação, ícones, visualizações, propostas, truques. Quando vou por ela, perdi-a. Esfumou-se. A minha ideia gosta de ser passada a lápis. E não me falem em blackberries e outros "berries" nem em iPhones, acho tecnologia a mais para um pobre telefone. Não contribuo muito para o mealheiro de Steve Jobs.
Não concebo um mundo digital sem papel e se ele vier integrarei as seitas reacionárias que usam matérias proibidas.
Entre o dano das árvores abatidas e o dano da terra rara, para não falar na poluição dos cemitérios tecnológicos, prefiro a morte de árvores. O papel é reciclável.
A morte das livrarias e dos jornais trará consigo a morte dos autores (Salman Rushdie escreveu sobre isto) porque serão privados dos direitos e porque não terão controlo sobre o material pirateado. Porque não serão promovidos e exaltados pelos livreiros e passarão a integrar resultados dos algoritmos da Amazon, Google e afins. Se leu isto deverá ler aquilo. Quem comprou isto também comprou aquilo. Nada mais estúpido do que um conselho literário dado por chips. Uma estatística.
Vêm estas reflexões a propósito de Murdoch, considerado o salvador dos jornais de papel, o homem que poderia dar a volta ao final trágico. Nada mais errado. Murdoch foi o coveiro do jornalismo, o assassino em série da informação laboriosamente pesquisada e apresentada. O inimigo da prosa. A queda da casa de Murdoch é uma oportunidade para repensar a suicidária tabloidização  de todo o jornalismo e a crise da grande reportagem, parente da literatura. Na "Newsweek" de Tim Brown, Carl Bernstein (Watergate) escreveu-lhe um belo obituário. O jornalismo não precisa de criminosos.

Texto: Clara Ferreira Alves - Revista Única/Lisboa 23/07/2011
Fotografia: Enéas Bispo de Oliveira


P.S_Considero a Clara Ferreira Alves uma das mais brilhantes cronistas portuguesas.

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